Postado em 27/11/2018
Desde 2014, vêm sendo noticiados casos de gestantes realizando exercícios de alta intensidade e ganhando pouquíssimo peso durante os nove meses, provocando muita curiosidade por parte do público leigo e muita polêmica entre os profissionais da saúde. Os depoimentos de sucesso dessas gestantes no que se refere ao aspecto estético do corpo durante a gestação, chamam a atenção de muitas pessoas e levam ao aumento no número de gestantes que adotam esse modelo de treinamento, geralmente orientadas por conselhos de blogueiras ou de profissionais que demonstram não conhecer suficientemente os efeitos do exercício de alta intensidade sobre a gestação.
A recomendação médica para a realização de exercícios regulares durante a gestação é relativamente recente. Até o final da década de 80, as gestantes eram orientadas a realizar apenas exercícios posturais e respiratórios, preparatórios para o parto. Somente a partir da década de 1990 os exercícios aeróbicos e de força durante a gestação passaram a ser estimulados pelos guias e protocolos do American Collegeof Obstetriciansand Gynecologists (ACOG) e a partir de 2002, a prática de atividade física na gestação foi reconhecida como uma atividade segura, indicada para todas as gestantes saudáveis.
O Brasil adota as recomendações oficiais do ACOG, uma das associações médicas mais respeitadas no mundo. No guideline publicado pela entidade,são estabelecidas as recomendações, as contra-indicações absolutas e as contra-indicações relativas para a prática de exercícios por gestantes. De acordo com esse documento, exercícios aeróbicos e de força devem ser realizados pela gestante, desde que a intensidade seja leve ou moderada, em 3 a 4 sessões semanais que devem durar de 30 a 60 minutos para mulheres que já treinavam antes da gestação e em 2 a 3 sessões semanais de 15 a 30 minutos para as que eram sedentárias antes da gestação. Estudos que acompanharam grandes grupos de gestantes mostram que exercícios com essas características já são suficientes para prevenir o ganho excessivo de peso, o aumento da pressão arterial, as câimbras, o inchaço e o diabetes gestacional. Programas de treinamento que seguiram essas recomendações não foram associados a efeitos adversos para o feto, o recém-nascido ou a mãe. Até o momento, não se sabe ao certo quais seriam as consequências da realização de exercícios vigorosos para a mãe e para o bebê.
Durante a realização de exercícios, o fluxo sanguíneo é direcionado para os músculos; a energia que vem do consumo de nutrientes é destinada a manter o corpo em movimento; a frequência cardíaca e a pressão arterial aumentam. Quanto mais alta a intensidade do exercício, maior é a magnitude dessas reações. Dessa forma, exercício de alta intensidade poderia estar associado a diversas condições desfavoráveis ao feto, tais como o aumento de sua frequência cardíaca e pressão arterial, podendo levar à morte do feto; e redução da disponibilidade de nutrientes, levando ao baixo peso do recém-nascido. A associação entre o exercício de alta intensidade e o baixo peso do recém-nascido já foi demonstrado em diversos estudos e mais recentemente, em um estudo realizado na UNIFESP, no qual ratas prenhas foram submetidas a um treinamento vigoroso de natação, com 5 sessões semanais.
Para comentar sobre o assunto, entrevistamos a profa. Dra. Valéria Cristina dos Santos Almeida, proprietária do Método Gerar, empresa especializada na prescrição de exercícios para gestantes e na capacitação de profissionais de Educação Física para atender a esta população, que destacou alguns pontos importantes sobre os efeitos do exercício de alta intensidade durante a gestação. Ela lembra que um dos primeiros estudos sobre exercícios na gestação foi realizado por James Clapp na década de 70 com ovelhas prenhes e naquela época já conseguiu observa redução de fluxo sanguíneo uterino de acordo com a intensidade do exercício realizado em esteira. Além disso, em outros estudos nacionais da década de 80 e 90 de Piçarro e Denadai com animais experimentais, observaram redução de ganho de peso durante de ratas grávidas e no peso ao nascer de seus respectivos filhotes. Isso acontece, pois com a realização do exercício físico há redistribuição do sangue das regiões viscerais para os músculos ativos. Assim sendo, o útero que fica na região esplânica sofre quando a realização do exercício intenso, e assim o feto deixa de receber a quantidade de sangue que contem o oxigênio e nutrientes adequadamente. Outro estudo de Salvesenet al (2011) observou bradicardia fetal, demostrando sofrimento fetal em bebes de atletas de elite.
Para a professora, é essencial considerar também a possibilidade de anormalidades na gestação.
Nos países ocidentais industrializados, aproximadamente 0,2 a 4,0% das gestações são complicadas por cardiopatias, Lage e Barbosa (2012) e apesar desta taxa não ser elevada, existe o risco de complicações graves (Nowalany-Kozielska 2015). Quanto maior a intensidade do exercício aeróbico, maior é o débito cardíacoSendo assim, se a gestante realizar exercícios intensos corre um risco ainda maior de desenvolver uma cardiopatia, risco este ainda não computado na literatura.
Do ponto de vista biomecânico, a professora destaca que ... as articulações ficam frouxas durante a gestação, pois a pelve deve estar bem preparada para o parto. Com as articulações frouxas, inclusive tornozelos e joelhos, que suportam o peso corporal, aumenta o risco de lesões e quedas. Desta forma, exercícios resistidos de alta intensidade também não são bem vindos durante a gestação.
O treinamento de alta intensidade poderia ainda trazer consequências para a mulher no período pós-parto. De acordo com a professora Valéria Almeida, ?mulheres que realizam treinamento extenuante ganham menos peso e consequentemente menos gordura corporal, como a literatura sugere o ganho de gordura corporal ocorre para ajudar num gasto energético elevado para formação de leite. Assim, a mulher que ganha pouca gordura durante a gestação pode perder peso em excesso durante o período de amamentação e por este motivo deixar de amamentar precocemente.?
Outras consequências devem ser analisadas. O assoalho pélvico, conjunto de músculos localizado na base da pelve e que é responsável pela sustentação dos órgãos internos, com papel fundamental no controle da liberação e contenção da urina, pode ser lesionado em razão do excesso de carga em exercícios de força. Por si só, a gestação provoca uma sobrecarga nesta musculatura, o que explica a forte associação entre gestação, parto e incontinência urinária, presente em diversos estudos sobre essa doença. Durante os nove meses, a musculatura abdominal se ajusta ao crescimento uterino, permitindo que o bebê tenha um espaço adequado para crescer e se movimentar. O fortalecimento excessivo desses músculos reduz esse espaço e ainda não se sabe quais são as consequências dessa condição para o feto.
O número de blogues, páginas no Facebook, sites e outros canais em redes sociais que disponibilizam dicas e modelos de treinamento para as mulheres que desejam continuar saradas durante a gestação cresce a cada dia. No entanto, em nenhum deles há qualquer informação baseada em evidência científica ou recomendação médica; são relatos de experiências criadas pelas próprias autoras e que, aparentemente, deram certo. Porém, ainda não se sabe quais serão os efeitos em longo prazo do treinamento de alta intensidade sobre o crescimento e desenvolvimento desses bebês. Tampouco são noticiados os casos que deram errado e que, portanto, não sabemos se existem gestantes que perderam seus bebês, bebês que nasceram abaixo do peso, mulheres que tiveram consequências físicas como enfraquecimento do assoalho pélvico ou patologias na coluna vertebral.
A sociedade contemporânea, que valoriza tanto a beleza, aparência jovem e atlética, em detrimento de outros valores humanos, mostra mais uma de suas criações. A gestante sarada, que normalmente não é nenhuma atleta de elite, resolve mostrar ao mundo que, apesar de ser a responsável pelo desenvolvimento de um bebê, ainda assim, é capaz de se manter em forma. Mais uma vez, o senso comum e suas certezas desafiam a prudência e cautela da ciência. Em um claro processo de inversão de valores, a sociedade do imediatismo prefere testar por si mesma os métodos que a ciência afirma não serem seguros. Quando se trata da aparência, a história se repete. Tem sido assim com alimentação, medicamentos, procedimentos, e agora, os exercícios durante a gestação.
Entrevistadora
Ester Mendes | Labjor UNICAMP
Mestre em Biodinâmica do Movimento Humano
Docente do curso de Educação Física da FMU
Coordenadora do Curso de Especialização em Treinamento Feminino - FMU
Entrevistada:
Valéria Cristina dos Santos Almeida
Doutora em Fisiologia do Exercício
Docente do curso de Educação Física da FMU
Especialista em Exercício para Gestantes
Proprietária da empresa Método Gerar